Satanás e Lúcifer debatem sobre a salvação ou a danação do Brasil. Produzido pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP e pela Cinemateca Brasileira, o filme contrapõe o cortejo fúnebre do fêmur do padre José de Anchieta, filmado no estilo cinema direto, com imagens de uma encenação da peça teatral “Na Vila de Vitória ou Auto de São Maurício”, escrita em 1595 pelo próprio Anchieta.
Crítica: Em 1966, em plena ditadura militar, o jovem Geraldo Sarno, aos 28 anos, filmou seu segundo trabalho, o curta-metragem Auto de Vitória. O filme trazia uma reflexão sobre as influências da igreja nas decisões políticas e sociais do Brasil ao colocar o diretor, oriundo da cidade de Poções, na Bahia, diante de um cortejo religioso, no qual um veículo militar conduz o fêmur do padre José de Anchieta, da Basílica de Aparecida para a Catedral da Sé, em São Paulo.
A imagem é simbólica. A fé de um país sendo acompanhada por seus fiéis, mas conduzida e manipulada por militares durante a ditadura militar. Após o registro histórico, com as imagens a desenhar aquela ideia de poder atrelado à religião, o filme muda sua face para uma encenação na qual Lúcifer e Satanás discutem o futuro do Brasil. A montagem do texto, baseado na peça Na Vila de Vitória ou Auto de São Maurício, escrita pelo próprio Padre Anchieta em 1595, reflete a ideia de um país no qual Deus não dita mais qualquer regra, cabendo a demônios traçar as decisões. Nada mais perceptível como um golpe pesado da realidade no Brasil neopentecostal que ascendeu de 2016 em diante.
Auto de Vitória se encontrava "perdido", e o próprio Geraldo Sarno, que viria a construir uma sólida carreira como cineasta durante as décadas seguintes, não sabia do paradeiro da obra. O diretor de Viramundo (1964) e de filmes que refletem exatamente a condição do poder em um país marcado pelo constante êxodo de seus cidadãos em busca de melhores condições de vida e de sua identidade como povo, viria a falecer em 2022, sem ter acesso ao curta. Coube a um acaso e a curiosidade do biógrafo de Geraldo, o jornalista Piero Sbragia, a localização da obra na Cinemateca Nacional, em São Paulo. (João Paulo Barreto, jornal A Tarde)